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segunda-feira, outubro 08, 2007

Prosa de Mirisola

A Noite que Levei a Praça Roosevelt Para dar Uma Volta no Copacabana Palace

Por Marcelo Mirisola

Numa noite de raro esplendor, e fartas baixarias, levei a Praça Roosevelt para dar uma volta no Copacabana Palace. Era festa de abertura da Bienal do Livro do Rio, me convidaram. A Praça a que me refiro é a Roosevelt mesmo, antes de o Dimenstein encenar seu showzinho de horrores politicamente correto (ele e o maestro aleijão), e antes da invasão dos mauricinhos da Rede Globo. Engraçado: depois de tantas idas e vindas, virei um escritor. Tem gente que vira gerente de supermercado, outros viram lobisomens, e têm aqueles que, independente de se transformar em qualquer coisa, sempre vão ser uns vermes. Fácil de identificar, sobretudo quando são metidos a escrever, diferente do gerente do supermercado, por exemplo, que é objetivo em sua insignificância (trata-se de um exemplo: deve existir gerente de supermercado gente boa, como existem virgens nos lupanares e santos nas Igrejas), enfim, esses vermes metidos a escritores são os tipos mais fáceis de se identificar, e os mais asquerosos. O motivo é simples; basicamente não conseguem disfarçar a condição de verme: a prática os impede. E é aí que eu me divirto, e tripudio, sem dó nem piedade.
Tropecei em vários exemplares na festa do Copacabana Palace. Se eu me chamasse Noé, fosse um velhaco e tivesse uma arca, organizaria minhas prateleiras em três gêneros: a começar pelo enfezado anti-social (geralmente esse tipo é 90% careca, e escreve livros sujos e malvados, e tem sua contrapartida no simpático arroz de festa que escreve livros malvados e sujos: claro, a “literatura” deles corresponde às respectivas biografias, alguns até se dependuram em ganchos), passando pelo deprimido-paranóico-rivotril, até chegar ao baixinho mafioso organizador de antologias e viagens ao redor do mundo; depois vem um negócio que eu não sei se é categoria ou gênero, chama-se periferia, que incluí os subgêneros afins, rappers invocados, o Xico Sá que é o maior gente fina, e os inocentes úteis de praxe a serviço dos grupos análogos: há quem chame esse oba-oba de futuro da literatura brasileira. Cada um dá o nome que quiser... Tem muita gente que me chama de filho da puta, e eu não estou nem aí. Vale que, naquela noite de raro esplendor, todos faziam seus contatos e administravam suas respectivas conveniências & esquisitices para consumo próprio, e alheio. Seria redundância repetir, mas faço questão: – vermes. Em sendo vermes, desfrutam da complacência dos seus iguais: jornalistas, críticos, editores e despachantes associados que, afinal de contas, estavam lá (e estarão nas próximas ocasiões) para tirar suas casquinhas, e para celebrar qualquer coisa; assim, de “evento em popa” e devidamente blindados, os vermes disfarçam a falta de talento preenchendo seus livros com sintomas, sim, “sintomas” de algo vago e nebuloso. Um treco que serve para encher os bolsos e aumentar o prestígio, mas que não tem nada a ver com literatura, eu diria que tanto podem tratar de casarios abandonados, como podem falar de muros pichados e bandinhas de rock and roll, tanto faz se são escadarias do século XIX, ou logradouros de um lugar que poderia se chamar Lapa antiga, ou alguma coisa nojentinha sem pé nem cabeça (que eles mesmos chamam de “grotesco-lírico”), ou seja; são rufiões de burburinhos, de lugares fantasmas e estéreis como eles. Regra geral os vermes – independente de gênero e categoria – vivem deprimidos pelos cantos, querem colo e sofrem por amor, dedicam-se às cachaças mineiras e, uma vez que não têm virilidade, conhecem de cor os sambas e as biografias dos negões da antiga, de modo que praticam uma boêmia premeditada, e puxam o saco uns dos outros, e, é claro - além dos prosaicos tickets-refeição e rapapés -, faturam dinheiro grosso, bolsas, editais e licitações públicas. Os vermes sabem jogar para a platéia, adquiriram desenvoltura nos palcos, dão palestras e workshops, têm colunas em jornais e revistas – e, nem seria preciso repetir, mas faço questão, não escrevem porcaria nenhuma. São muito jovens, e sordidamente distraídos. Nessa distração – assim, na base da cultura de boteco – conseguem cooptar figurões literários (geralmente sessentões românticos) para dar um ar de seriedade e bom-caratismo à causa. Em suma: adoram um tênis All Star, e enganam bem.
Menos a mim, é claro – que não sou nenhum Noé, nem entomologista, tampouco gerente de supermercado, e me recuso veementemente a perder mais tempo em catalogá-los. Basta dizer que estavam todos lá no Copacabana Palace, numa noite de raro esplendor, e pavonear ostensivo.
Uísque, garçom. Traz a décima quinta dose, senão vou acabar acreditando que aquele careca de olhar enfezado na minha frente realmente é um gênio, e que eu não passo de um ressentido filhodaputa que cuspo no prato em que comi, cuspo não garçom, vou logo vomitando.
--- Ôooo, Careca. Você aí! Você mesmo... por que está me olhando com esse olhar enfezado? Você é mesmo um gênio?
Não deu tempo nem de fazer meu primeiro pedido. Acreditam que o gênio enfezado deu de ombros? Ai, que medo: e lá foi ele, rebolando, confabular com o mafiozinho sensível organizador de antologias. Os vermes me odeiam sinceramente e acham que eu pertenço a uma “raça ruim”: sei lá, para eles, eu devo ser uma espécie de avanço tecnológico do Saci Pererê, uma entidade debochada que ameaça reputações, bagunça os coretos – mente, joga sujo e subverte – enfim, um sacana filhodaputa que olha através dos espelhos e aponta, ri de suas fraudes passadas, presentes e futuras,eles não me perdoam porque eu troco suas coisinhas preciosas de lugar, e não devia ter escrito os livros que escrevi. Aliás, eles adoram meus livros. Fui eu mesmo que escrevi, fazer o quê?
Bem, já que é assim... digo, já que talento não tem nada a ver com estabilidade, cargos, conchavos e tapinhas nas costas, e já que eles acham mesmo que eu sou um espírito zombeteiro vindo lá dos quintos dos infernos, ora, já que é assim, eu me divirto. E o melhor, continuo fazendo aquilo que eles jamais vão conseguir fazer (isso os deixa mais deprimidinhos): literatura da boa.
Eu juro que só ia pedir mais três doses de uísque. Isso aconteceu um pouco depois de o careca enfezado dar de ombros... Até então, eu não precisei chamar o garçom uma única vez: o garçom, esse sim, um gênio de verdade. Além de adivinhar meus pensamentos, e antes de ser um gênio, também era um sensato: bem, creio que era. O garçom simplesmente aparecia na hora certa. Basta dizer que, num raio de cem metros quadrados, era o único que não fazia cara de escritor, e aparecia na minha frente sempre que eu pensava em mais uma dose de uísque. Até que se escafedeu.
Aí aconteceu. Lá pelas tantas, acho que três da madrugada, uma senhorazinha de cabelos ruivos encaracolados, olhos vazados de boneca mutilada, feia de doer, aparece no lugar do garçom, bem na minha frente, e diz: “Não teve dinheiro público”. O quê?
Então ela repete: “Não teve dinheiro público” Cazzo! O que aquele espantalho mais estranho que Carrie, a estranha, queria comigo? Garçom, cadê você? Não teve dinheiro público, não teve dinheiro público, não teve dinheiro público, não teve dinheiro público, não teve dinheiro público, não teve dinheiro público. Pela primeira vez na minha vida, eu olhava para uma pessoa que não tinha um olhar. Se eu dissesse que ela não tinha alma, estaria sendo generoso. Aquele olhar vazado de boneca mutilada era o que ela e os amiguinhos insossos podiam me oferecer, olhar de quem ficava à espreita no cocho, olhar típico dos pequeninos que jamais – como bem escreveu meu amigo Furio Lonza – iriam “pressentir o vulto da morte rondando a casa e/ou jamais iriam flagrar o cio da carne no limiar de um incesto”; era um olhar vazado,apenas ódio sem a vida do ódio, e foi aquele olhar broxado,que repetiu mais uma vez, “não teve dinheiro público”. Garçom! Cadê você? Quando a criatura do pântano – pela milésima vez - repetiu “não teve dinheiro público”, bem, na falta do garçom, e de mais uma dose de uísque, tive de me defender: “Ah,não? Então quem é que pagou?”
Foi nesse instante que chamei a Praça Roosevelt para dar uma volta no Copacabana Palace, era a única coisa que me restava. Aquela festa de raro esplendor havia se transformado em farta baixaria
--- Os empresários é que pagaram! Os empresários!
Ouviu, garçom?
A boneca mutilada de olhar vazado havia se metido em maus lençóis. Retrucamos, eu e a Praça Roosevelt: “Pagaram a você, a seus amiguinhos e ao Renan Calheiros!”.
Aí o sururu se instalou pra valer! Nessa hora, Cacá, minha mulher, apareceu. Ela, Carola e Giovanna, e mais dois seguranças. A boneca do capeta precisou de cinco pessoas para segurá-la. Não conseguiram. Eu ria muito do outro lado. Porque sabia qual era a diferença entre ser escritor, e ser uma pessoa mutilada. Há muito havia feito a escolha, e há muito havia descartado a hipótese de ser um gerente de supermercado: talvez por incompetência (mas isso não vem ao caso). Pela primeira vez, brindei à Maldição. Viva, garçom! Eu queria ver qual era a verdade dos vermes. E eles, meu caro garçom (onde você se meteu?), não tinham olhar, não tinham vida e não tinham morte: eram uma fraude trespassada em si mesma. Vultos. Só isso, e - não podia ser diferente – como vultos desmancharam-se confrontados com cinco segundos do meu escárnio... e olha que esse escárnio tem séculos, mas bastou cinco segundos para desfigurar a Boneca Mutilada. Entendi que a Maldição não tem prazo de validade. Enfim, não me omiti, e servi de espelho para a Boneca Mutilada. Troquei as coisinhas dela de lugar. Ela percebeu que o artefato havia ruído, e, diante da própria pequenez, sucumbiu junto. Foi feio. Mas não tive pena, de jeito nenhum. Dali aquela alminha replicante – no máximo, e com muito boa vontade – poderia pleitear uma vaga de encosto nas seções de descarrego do bispo Edir Macedo, e olhe lá. Eta Barraco! Valeu Praça Roosevelt, obrigado. Finalmente, o garçom deu o ar de sua graça genial, e me ofereceu mais uma dose de uísque. Baixaria. Os berros da boneca mutilada ecoavam no salão austero do Copacabana Palace: “Não teve dinheiro público! Foram os empresários! Os empresários! Rivotril! Rivotril! Eu moro no pé no morro, ele não sabe de onde eu vim! Os empresários pagaram! Rivotril! Rivotril!”.
O que mais? Pensei: quero que essa canalhada dê as cartas por muito tempo. Eles que se esbaldem, faturem todas as licitações, editais, leis Rouanet e o diabo a quatro. Entupam-se de dinheiro, antidepressivos, e me ignorem mesmo. O prejuízo não é meu. Em seguida, lembrei de uma valsinha que era tema da novela o Casarão, idos dos setenta: “Eu sonhei que tu estavas tão linda/ numa festa de raro esplendor....”
Isso aí. Se alguém se interessar numa investigação mais séria, seja a Secretaria da Fazenda, o Ministério Público, a Saúde Pública... ou até o Padre Quevedo, a lebre está levantada, fiz a minha parte: no mais desejo boa sorte e feliz natal. Foda-se. Se os amores são expressos, a vida é passageira. Vade Retro Satanás!

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