Formulário de contato

Nome

E-mail *

Mensagem *

domingo, junho 17, 2007

Anna O

Anna O - por Julio Pimentel Pinto

Anna O. e outras novelas vale como uma aula de matemática, uma matemática do duplo. Porque um mais um é igual a dois, e Ricardo Lísias sabe disso. Mas um mais um pode ficar aquém ou além de dois, e as cinco histórias de Anna O. e outras novelas constatam – com amargura, desconsolo e uma dor cavalar – que quase sempre nos perdemos na matemática de um quotidiano à deriva, na política que repisa e ecoa o passado.

Lísias recebeu o Prêmio Portugal Telecom de 2006 por seu romance Duas praças, um relato cruzado de dois tempos, dois espaços, dois itinerários vertiginosos. Seus contos de Anna O. voltam ao tema do duplo. “Corpo” é, inclusive, uma espécie de ensaio de personagens que aparecem alargados em Duas praças: Maria, o Manequim e o narrador desconcertam o leitor com sua obsessão que nunca encontra resguardo num mundo de pessoas isoladas, que andam entre homens – já falou Nietzsche – como entre pedaços e fragmentos de homens. Maria e o narrador repetem ladainhas que (acreditam) podem lhes dar segurança. Apegam-se a objetos que exorcizem o medo e a covardia. Anseiam por perdão e têm vergonha. Seguem sua rotina, mas pensam o tempo todo em voltar. Querem reunir seus presentes desfeitos (religar?) a um passado que pode até parecer sólido na potência afetiva da memória, mas só se mostra esgarçado e corroído, fragmentário e insuficiente para suportar qualquer ser. Giram (com seus pensamentos repetidos) em torno de si mesmos sem notar que o eixo já se desfez e que não há saída, nem consolo.

Desassossego pior vive o protagonista de “Capuz”, o conto mais incisivo do livro. Agônico, acostuma-se ao confinamento, que nosso olhar habituado às agruras das degeneradas cidades brasileiras associa a um seqüestro. Mas não é necessário um seqüestro para que prefiramos ficar de olhos bem fechados, para que não tiremos jamais o capuz colado ao rosto e ao pescoço. Tampouco é preciso seqüestro para que o cegamento pareça uma boa saída e a desorientação e o medo se tornem os últimos (e desviantes) resíduos da nossa parca consciência. A razão do narrador anseia por persistir e sua voz clama por lucidez, mas seus olhos – o duplo – preferem a escuridão: um mais um dá bem menos que dois. Se o narrador de “Corpo” se apega a um relógio que não tem certeza se viu e à própria roupa (e o bolso, para esconder as mãos), o de “Capuz” aceita o espaço restrito que lhe dão e o tempo desfiado, sem regras ou possibilidade de medição, que lhe sobra. Seu mundo se torna – tal qual o de Funes, o memorioso personagem de Borges – um vazadouro de lixo: pura lembrança, manifesta em intermináveis e estéreis listas, e carência de futuro. A ânsia por contato humano é ambígua – ele quer mesmo somar mais do que um? – e, quando o personagem se desdobra num companheiro de cativeiro, seu relato encontra a serenidade daqueles que não esperam mais nada, dos que caminham para o abandono: nem fragmentos de homens há por perto. Talvez só os encontre no passado, mas o passado é pantanoso e só em nossa ilusão acreditamos domá-lo – algo que outro narrador de Lísias, o de “Diário de viagem”, demora a perceber.

É um filho que procura um pai e, em sua matemática incerta, corta a geografia – afinal, inquietude é errância e independe do terreno por que se peregrina. Ele investiga simultaneamente dois desconhecidos, um mendigo letrado em português, que viu de relance em Amsterdã, e o pai, que a princípio é mero vocativo – “o filho da puta” – e depois, finalmente nomeado – “Filhodaputa”. Tudo é trânsito e tudo se perde na tradução desse narrador que gosta de encontrar semelhanças entre línguas e circula entre elas como entre identidades: vago e vazio. Confessa que nem usa o sobrenome do pai, que busca contra a vontade da mãe, de todos – até dele mesmo, que demora a chegar ao túmulo hoje obscuro de quem já foi poderoso. Da mesma forma que “Capuz” e “Corpo”, “Diário de viagem” é uma repetição, um círculo – de tempo, de angústias, da impossibilidade de prosseguir e de chegar. A perspectiva de volta ao lar do narrador-viajante, cronista de cada dia e de cada lugar, revela o que leitor já sabia desde o início: toda busca é infrutífera num mundo em que o humano se dissolveu. O pai-ditador está morto, o mendigo, perdido, e o próprio narrador não enxerga futuro, nem insiste em sua odisséia passadista.

É também o passado (e seus fantasmas) que assombra o psiquiatra de “Anna O.” enquanto ele aguarda para dar um parecer sobre as condições mentais “do general”. O psiquiatra é homem célebre, motivo de orgulho para quem o cerca. Na insônia que se repete, porém, ele se isola do mundo e de si mesmo, mergulha na histeria, fica à beira do colapso e da alucinação. Busca o antigo orientador para somar mais um e fazer dois, completando o par que romperia sua angústia e diminuiria a vergonha que sente e teme provocar. Ele deve diagnosticar a alienação alheia e, por isso, qual um espelho, aliena-se, chora, desespera. A aflição da espera compõe o tecido do conto e impõe o passado denso a um presente que se acreditava estável, mas não era. O homem que ele deve examinar é uma figura sombria – cadáver recriado que procria, diria Fernando Pessoa. Mas é ele, a quem todos admiram, que morre aos poucos, até chegar a hora em que deve agir. E o faz: passa ao outro – o quase-cadáver que examina – a ambiguidade que espera não viver mais. Ilusão vã, deixa claro Lísias, pois o doméstico e o político não se isolam com a facilidade de uma frase escrita, com a partição entre a técnica médica e o desconforto político. Numa espécie de rejeição de qualquer lógica romântica, eles sempre se confundem, ainda que possam se explicitar em trajetórias distintas e distantes, postas em diálogo. É o que ocorre com a única narradora do livro, a protagonista de “Dos nervos”. Seu passado a atormenta e sobrevive nas repetitivas recomendações maternas – que alerta sobre tudo, menos sobre o que de fato aflige a filha. O presente não a satisfaz. O resultado da equação de dois tempos superpostos e de identidades imprecisas é refletido em tempos verbais arrevezados, em frases interrompidas e na vontade de silêncio. Sua história segue paralela à de um enxadrista russo deslocado de seu país – em trânsito, em jogo, em silêncio, em suspenso. São narrativas unidas pela tensão, pela ansiedade passiva por mudanças, pelo medo de se mover – a não ser que seja entre livros ou num tabuleiro, emulações cautelosas, mas inférteis, da vida real, sem mistificação –, pelas figuras opressivas ora do político, ora do doméstico, pelo reconhecimento implícito de que toda separação entre as duas esferas é estranha nos dias que vivemos.

Lísias – com seus narradores e personagens agonizantes, duplicados, sonados ou insones, sempre dotados de uma dicção aflita – atualiza o sentido de ficção politizada. Recusa o proselitismo conteudista e engajado das décadas de 1960 ou 1970, o distanciamento cínico tão em voga nos anos 1980 e 1990 e o partidarismo descarado ou envergonhado de parte da militância atual. Em Lísias, o político invade a ficção de forma irreversível, mas não provoca curto-circuito: não a determina, nem a submete às suas regras. É como se a vida não se contivesse nos limites a que presunçosamente pretendemos restringi-la e transbordasse, exigente, no terreno da ficção, lembrando que os vínculos entre a pulsação do quotidiano e sua representação não dependem de pactos miméticos, nem são eliminados por jogos afetados e artificiais de palavras. Essa lembrança nos faz ver que um mais um (narrativas, pertenças, identidades...) podem ficar aquém de dois (pois os personagens de Lísias nunca formam pares perfeitos), mas sempre vão além para somar milhares, milhões de homens duplos.

Nenhum comentário:

Postagem em destaque

Amar remete a uma dificuldade... nem por ser de idade ou por conta da cidade. A dificuldade estah na vaidade. Amamos menos aos outros......