A polêmica surgiu e está na Folha de S. Paulo de 17/3 e 18/3. Indignado com a maracutaia literária inferida na matéria "Bonde das Letras", assinada por Cadão Volpato, o escritor Marcelo Mirisola (Joana a contragosto, Bangalô) manda recado malcriado para os autores João Paulo Cuenca e Rodrigo Teixeira, autores da idéia, comprada por Luís Schwarcz e financiada pela Lei Rouanet, que manda 16 escritores brasileiros ao exterior com o objetivo de escrever livros sobre as "emoções" ou algo que o valha.
A questão colocada por Mirisola é a ausência absoluta de critérios seletivos na escolha dos autores e até de valor literário numa iniciativa editorial desse porte (aliás bastante generoso, em termos de Brasil), resultando apenas, e mais uma vez num evento mercadológico, porque a coisa funciona como "ação entre amigos", algo absolutamente normal no país do jeitinho, onde (ainda) campeia a “estratégia do favor”, o que torna esse “bonde de letras” algo muito semelhante ao “trem da alegria” dos políticos. E bota subdesenvolvimento nisso!
Confira
a matéria da Folha. Que começa assim... ”Você é um escritor sem dinheiro, lutando pela sobrevivência. Tem, segundo suas próprias palavras, "apenas um dia de príncipe ao mês". Você emigrou dos quadrinhos para a literatura, vendeu os direitos para o cinema dos livros que publicou, mas ainda desenha uma última história de despedida. Um dia, aparece um sujeito oferecendo um mês de estadia em Nova York, onde você nunca esteve, com todas as despesas pagas e a única obrigação de retornar com uma história de amor na cabeça, que depois será publicada por uma das maiores editoras do Brasil. O escritor em questão existe, é Lourenço Mutarelli, um dos 16 autores brasileiros a caminho de 16 destinos diferentes no mundo, para viver uma experiência — qualquer experiência —, voltar e escrever um livro. A coleção se chama Amores expressos e foi idealizada por Rodrigo Teixeira, um jovem Quixote de pés bem plantados no chão.”
A resposta do Mirisola no Painel do Leitor, no dia seguinte:
"Vou reunir meus amigos de farra e pleitear uma grana da Lei Rouanet. Foi isso o que Rodrigo Teixeira e o escritor João Paulo Cuenca fizeram — e conseguiram R$ 1,2 milhão ("Bonde das letras", Ilustrada, 17/03). E, pra coisa não ficar tão ostensivamente chapa-branca, incluirei — além de mim — um ou dois figurões acima de qualquer suspeita no cardápio. Depois, basta procurar um editor generoso e idealista. Se for sócio de um banco, melhor. Só faltou um dado à reportagem: cada "escritor" embolsará R$ 10 mil, além de estadia, passagens e traslados ao redor desse mundão de Deus. Um mês de vida boa. Espero que escrevam grandes livros e relatem suas experiências na festa de Paraty do próximo ano. Assim é que se faz literatura no Brasil."
E, agora, a entrevista exclusiva de Mirisola para o Congresso em Foco:
Como você se insere na tradição literária brasileira?
A tradição literária brasileira – me parece – não está nem aí para mim. Está preocupada com autores de gabinete, chatos, politiqueiros e gente sem talento. Eu devia ter nascido em Buenos Aires.
Não acha que, entre o silêncio da crítica e o barulho ensurdecedor do marketing, quem sai perdendo é o próprio escritor?
Financeiramente, claro que sim.
Mas quem é que está preocupado com literatura?
Prêmios literários ajudam a carreira do escritor?
Se ele estiver inserido nisso que você chamou de "tradição literária" de chatos, politiqueiros e gente sem talento, ajuda. Tem gente que vive muito bem disso. Não é o meu caso, evidentemente.
Quais são suas influências literárias?
Podia ter sido você, se eu tivesse lido seus livros antes de escrever os meus, mas não foi o caso. Em vez de influência, prefiro chamar de afinidade. Tenho afinidade com autores confessionais e, como não podia deixar de ser, com alguns santos da Igreja Católica.
O que pensa da Festa Literária de Parati?
Ajuda a promover a literatura brasileira?
Escrevi tudo o que eu pensava num texto intitulado
"Paraty 2006" – se quiser pode linkar. A festa ajuda a promover a Companhia das Letras (leia-se: Unibanco) e os patrocinadores. Quanto aos escritores (sobretudo, os brasileiros), são uns carentes, deslumbrados. Vão lá para aparecer no jornal e ganhar tíquete-refeição. São gado do senhor Schwarcz [dono da Cia. das Letras]. Não se pode falar em "literatura brasileira" no caso de Paraty. Os escritores que aceitam o curral de Paraty são oportunistas, omissos e covardes. Gado.
Que conselho você daria ao escritor iniciante?
Desista. Então esse "bonde das letras", na sua opinião, seria uma espécie de "trem da alegria", no qual a literatura copia a nossa política, ambas pairando no ar merchandisinísticamente apenas como cascas vistosas, mas cascas, sem nada por dentro? Sofrendo assim duma morte dupla e simétrica?
Quanto ao "bonde das letras", é uma questão para ser analisada pelo Ministério Público. A Lei Rouanet virou gandaia. Tem precedentes vergonhosos, é bom lembrar. Essa lei precisa ser revista. Já se fez muita merda por aí com ela . Se não me engano – vale conferir –, a família Barreto levantou uma grana preta para produzir o filme Paixão de Jacobina. A cantora Ana Carolina já deu seus pitacões. Agora os editores descobriram o filão ... pobre Rouanet. Se eu fosse ele, tirava meu nome dessa baixaria. Ou você acha que só pelo fato de sair da Vila Madalena ou de Ipanema e de embolsar R$ 10 mil, mais traslados, passagens e hospedagem, os amigos de boteco de João Paulo Cuenca vão mudar o estilo? Nem aqui, nem na China.*
A escritora paulistana Márcia Denser publicou, entre outros, Tango Fantasma (1977), O Animal dos Motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), Diana caçadora (1986), Toda Prosa (2002) e Caim (2006). Participou de várias antologias importantes no Brasil e no exterior. Organizou três delas - uma das quais, Contos eróticos femininos, editada na Alemanha. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é pesquisadora de literatura brasileira contemporânea, jornalista e publicitária.