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segunda-feira, novembro 05, 2007

Adeus Duda Bandit

Eu não o conhecia pessoalmente. Conversava com ele através do orkut, onde o mantinha informado dos lançamentos do Ricardo Lísias. Ele, fã de Mirisola, com o tempo, ficou fascinado em saber que eu interagia com o Lísias nos Seminários da Casa da Palavra.
Hoje, abro meu orkut e recebo uma mensagem triste.
Duda Bandit, se foi...segue abaixo homenagem feita em seu blog:
http://deitandocabelo.blogspot.com/

Estou tentando, um pouco por obrigação, um pouco por necessidade. Um cara que foi importante na minha vida merecia isso, merecia um último desejo pedido tacitamente. É como se ao abrir aquela caixa azul me fosse exigido este texto sobre sua vida e nossa amizade e, é claro, todas as obrigações provindas deste ato. Mas, remoendo fundo dolorosas lembranças, não acho o momento exato, o choque... Bandit apareceu na minha vida, tudo se impôs por uma misteriosa afinidade, perdeu-se a memória do primeiro encontro, restou um todo sem início e sem fim definido (apesar do que aconteceu). Bandido, era assim que eu o chamava, tinha tudo que eu desejei ter, e ele, na contramão, dizia que eu possuía tudo o que ele queria... ah, meu amigo, não sabes o tanto que invejei seu ar torpe, sua auto-suficiência e apatia representada... Resumo tudo assim: Saulo, o diplomático, Duda, o leviano; Saulo, o coerente, Duda o insensato; Saulo, o apolíneo, Duda, o dionisíaco... Completávamos-nos em nossas incompletudes e ainda assim, apesar de tudo, nós dois não estávamos satisfeitos.
Nossa grande paixão em comum, entre tantas outras, eram as motocicletas, foi seu caso de amor com uma delas que lhe valeu na noite o apelido de que tanto gostava: Bandit, a máquina fabricada pela suzuki. Compartilhávamos também um apreço pela filosofia de Cioran, literatura francesa e um pouco de contravenção, eu muito menos...
Duda me mostrava seus escritos e eu aconselhava a publicação, frases elaboradas quase sempre quando chegava das agruras da noite, querendo manter nítido na memória tudo que acontecia. Daí surgiu o blog, no início duro, vertiginoso... mas depois veio uma chance de redenção, a cada palavra foi ficando menos torpe, embora mais confuso, senti em seu texto uma abertura para a poesia e para o lirismo, um bandido cansado e melancólico, sofrendo o estranhamento das almas, o padecimento por fêmea... não escondo que vibrei com a última fase, pois Bandit sempre me espinafrou por sofrer estas coisas na pele... era como se eu dissesse, “até tu, bandido?”... ele finalmente entregava os pontos, “somos parecidos, Sal... tão iguais às vezes!” Fui citado uma vez em seus contos, talvez duas, mas ele me dizia que eu sempre estava presente. “Mas onde estou, bandido?” Perguntava... “ao meu lado, hermano... sempre ao meu lado.”
***
Seu desaparecimento não teve espectadores, embora haja quem afirme ter visto um risco de fogo rasgando o céu naquela noite sem lua, “no flanco do motor vinha um anjo encouraçado”... as câmeras mostram sua entrada na ponte e não atestam a saída, nada encontrado... um longo mergulho no vão central da Terceira Ponte beijando o mar que ele adorava olhar, elucubrações... Uma morte anunciada, você talvez dissesse, caro DB... Sempre falou que tinha vivido demais em seus trinta anos quase completos, que tinha escapado por um triz tantas vezes que cada dia era prorrogação... eu ria, não acreditava, embora algo em mim recomendasse cautela.
As circunstâncias do possível acidente são estranhas e sujeitas a especulações. Não entrarei neste mérito. Dias depois as autoridades policiais consolidaram o entendimento em direção à queda de Duda e sua morte no mar. Foi quando recebi uma caixa azul, dessas de camisa, entregue por Bárbara Bonheur, a escritora. Abatida, olhos fundos, ela bateu na minha porta, entregou e saiu sem falar quase nada sobre aquilo, apenas “oi”, “ele mandou te entregar se um dia não pudesse” e “adeus”. Fechei a porta e coloquei a encomenda na mesa da cozinha, ao lado de uma generosa dose de uísque, sabia que ia doer. Olhei aquela matéria na mesa por um tempo. Depois abri e a primeira coisa que reconheci foi o exemplar de Crime e Castigo, livro preferido dele, depois veio a senha deste blog e um poema escrito com sua letra irregular com cópia datilografada:
Pensa no Fausto,
Pensa na espessura da queda
(a queda pode ser doce)
Nunca te esqueças de Artaud, dos duplos
Não existe limite entre arte e vida,
de resto é estelionato...
Leia umas páginas do Céline
E se tudo for em vão
Percorra o velhão
Um poema bêbado de Bukowski...
Depois beba uma cerveja no balcão do bar
Não te esquecendo de deixar no rosto
O semblante de quem sabe o que está acontecendo.
****
Um envelope no fundo da caixa estava cheio de textos, alguns já publicados aqui, outros inéditos. Entre eles a versão integral da famigerada “HH, uma novelinha escorada”... Do lado de fora seu nome em letras vermelhas “Duda Bandit”. De todos os textos, um inédito chama a atenção pelo tema bastante estranho na obra do bandido, alguns poderão considerá-lo “visão profética”, auto-profética, aliás... Reproduzo:
Palavras sobre o sentimento aquático de não estar quando se está e vice-versa...
Borbulhou uma, duas vezes, nem tentou respirar, gravidade atuando de forma nova... uma vida presa ao chão sendo questionada... sabia que sem respirar resistiria por no máximo três minutos... mas agradeceu pela ciência de que restava tão pouco, uma certeza enfim... nem questionou o opus, nem pensou em ninguém, sentiu-se patético mais uma vez na vida, agora pela última vez... tentou acostumar-se com a visão turva, o líquido pressionando os olhos, a corrente o fazia dançar, logo ele que nunca dançava por recomendação expressa de Norman Mailer (os machões não dançam), pensou quanto tempo tinha passado, nem trinta segundos, se esperasse viver até 60 anos tinha gasto apenas dez por cento de toda sua vida, seria o equivalente a 6 anos, uma criança ainda... a aventura do tempo mais uma vez, pensou na relatividade e lamentou seu desinteresse pela física e pelos filósofos da lentidão e velocidade... agora nem tinha importância, agora era tarde e era o mesmo... mas queria ter ciência daquilo tudo, interesse pela esquisitice das alminhas... deu um sorriso e pensou que agora tinha terminado mais um minuto, um terço da nova realidade... em vinte anos já teria levado porrada o suficiente e as noites torpes já apareceriam na pele...mas não se conformava com a turvação, queria uma imagem nova para terminar seus dias, e neste impulso já se esgotavam dois minutos, quarenta anos tão rápido, acostumava-se, resignava-se... o filho que não teve, o fruto que não gerou, nada interessava pois sequer via um palmo à sua frente, o ar faltava, sentia o pulmão cheio, mas carecia do oxigênio necessário... soltou mais algumas borbulhas para aliviar o peito e tentou se concentrar e potencializar o que ainda restava, prendia-se forte às ultimas moléculas de oxigênio... os sentidos já falhavam, os olhos já fechavam, nem se mexeu mais, esperou, esperou... membros formigavam, o pulmão explodia chamando ar, desfaleceu dez segundos antes de completar três minutos... o mundo acima contava menos um e era o mesmo, absurdamente o mesmo.
***
Nego a visão profética, em primeiro lugar porque se Bandit realmente caiu do vão central da Terceira Ponte estamos falando de uma altura de 70 metros, impossível submergir no mar e sentir tudo que representou no texto, o impacto na água é morte certa e rápida. Se fosse para ser profético, e conhecendo o cara, digo que ele teria falado sobre a sensação da queda, como o falou em poema dedicado à menina de Madrid pouco antes do desaparecimento e cujo fragmento serve de epígrafe a esta carta-depoimento... prefiro, antes, encarar o poema-prosa acima como uma brincadeira infantil sobre o fingir morrer quando se banha na praia e esgoto aqui o tema... preocupo-me antes quanto ao envelope e os destinos do blog, tenho obrigações de depositário. Eu sei o que devo fazer. Mas não é tão simples.
Três dias depois me faltam forças para destruir tudo, clicar naquele lugar e confirmar. Já tentei duas vezes. Mas sinto que é preciso. Duda dizia sempre, “minha vida surgiu pra acabar em livreco, bicho! Daqueles de papel jornal, subliteratura”.
Como deixar de lembrar as noites em que rodávamos pelo prazer de rodar, as motocicletas emparelhadas, o zunir do pneu no asfalto... a Long Nec no balcão do bar e a gente fingindo nem notar as moças que passavam, como se o ar da noite bastasse para aliviar as dores do mundo... tenho de ser fiel ao desejo oculto do bandido.
***
Então é isso. Preciso fazer a vontade de Duda Bandit, o cara durão que se passava por Samuel Spade em homenagem a Dashiell Hammett, que apreciava inferninhos e literatura, que sempre metia os pés pelas mãos com as mulheres, olhava o mar e lia os franceses, embora se realizasse com John Fante e Charles Bukowski.
Bandit, preciso fazer justiça, levou sua artevida muito a sério. Via poesia nos semáforos e desprezava escritores e artistas na mesma proporção em que amava a criatividade... (vou sentir sua falta, amigo).
Meu irmão, tu deves estar feliz com esse final, seja ele verdadeiro ou falso (como confiar na polícia?) foi digno da vertigem da Ilha do Cão... De minha parte, sei que não sou o mesmo hoje, assim como você saiu de sua torpeza extrema, eu, na mesma proporção, saí de minha delicadeza drástica... já não recito Rimbaud,
“Par délicatesse J' ai perdu ma vi.”
Chega a hora do adeus... eu, depositário de tuas palavras, digo: vai, Bandido... vai queimar pneu no asfalto etéreo...
Saulo Ribeiro
Vitória do Espírito Santo na primavera de 2007.

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Amar remete a uma dificuldade... nem por ser de idade ou por conta da cidade. A dificuldade estah na vaidade. Amamos menos aos outros......